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A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, decidiu que o não recolhimento de ICMS próprio, ainda que declarado, configura crime de apropriação indébita tributária, previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990. A decisão, proferida no Habeas Corpus nº 399.109, uniformiza a jurisprudência da 5ª e da 6ª Turmas do STJ quanto à matéria, podendo servir de baliza para as instâncias inferiores, mas acaba por contrariar outros entendimentos consolidados tanto no próprio STJ quanto no Supremo Tribunal Federal (STF).
Inicialmente, é importante analisar o tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990. Este dispositivo legal fixa pena de seis meses a dois anos de detenção e de multa para quem “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Conforme bem apontado pela Ministra Relatora Maria Thereza de Assis Moura, para se compreender bem a questão é necessário “saber como se deve interpretar a expressão típica tributo 'descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação'” (AgRg no REsp 1632556/SC, Sexta Turma, julgado em 07/03/2017).
De acordo com o art. 121 do Código Tributário Nacional (CTN), sujeito passivo da obrigação é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo e poderá ser contribuinte ou responsável. Enquanto o contribuinte possui relação pessoal e direta com o fato gerador, o responsável, apesar de não estar diretamente relacionado, guarda algum vínculo com o fato, o que autoriza a lei a lhe atribuir a responsabilidade pelo recolhimento da exação.
Melhor explicando, toma-se o imposto de renda (IR) retido na fonte como exemplo. O fato gerador do IR (auferir renda) é praticado por quem recebe a remuneração, e apenas essa pessoa poderá ser contribuinte do imposto. Contudo, visando à maior eficiência na arrecadação tributária, o legislador federal atribuiu à fonte pagadora a responsabilidade pela retenção e pelo recolhimento do IR. A fonte pagadora, nesta hipótese, é sujeito passivo da obrigação na condição de responsável tributário. O recolhimento do IR não é feito em nome próprio, mas sim em nome de quem guarda relação direta com o fato gerador.
A lei, ao atribuir a responsabilidade tributária a alguém, também lhe garante meios de reter o valor do tributo devido ou de buscar o ressarcimento de referida quantia junto a quem efetivamente pratica o fato gerador. E é exatamente a isso que se refere a expressão “valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação”.
Diante disso, percebe-se que apenas o responsável tributário pode praticar o crime de apropriação indébita tributária, descrito no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990. Como visto, apenas o responsável tributário poderá descontar ou cobrar tributo de outrem e deixá-lo de recolher aos cofres públicos.
O ICMS próprio, ainda que seja imposto indireto, permitindo a transferência do ônus financeiro ao consumidor final, não se enquadra na hipótese de responsabilidade tributária. O fato gerador deste tributo estadual (realizar operação relativa à circulação de mercadorias, dentre outros) é praticado pelo comerciante, sendo ele o próprio contribuinte do ICMS. O consumidor final não é contribuinte nem responsável tributário e não integra qualquer relação jurídica com o fisco estadual. Em outras palavras, o consumidor final não será cobrado pelo pagamento do imposto devido na operação.
Logo, a transferência do ônus financeiro do ICMS não permite a conclusão de que esse tributo é “descontado ou cobrado” do consumidor final. Trata-se apenas de composição do preço da mercadoria a partir dos custos da sua produção.
Salienta-se que não estamos a tratar do ICMS submetido ao regime da substituição tributária, caso em que, sim, poderá haver configuração do crime de apropriação indébita. A recente decisão do STJ passou a criminalizar o não recolhimento de ICMS devido em nome próprio, ou seja, a mera inadimplência fiscal.
Assim, além de se distanciar dos conceitos tributários, a decisão analisada contraria posicionamentos há muito consolidados nas Cortes Superiores.
No STF, no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 999.425, com repercussão geral, o Ministro Relator Ricardo Lewandowski destacou que “as condutas tipificadas na Lei 8.137/1991 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos” e que “não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco”. E o STJ também entende que o mero inadimplemento da obrigação tributária não configura violação da lei, o que já foi, inclusive, sumulado (Súmula 430).
Além disso, esse posicionamento do STJ afronta o direito à ampla defesa ao permitir a utilização da ação penal como meio indireto de cobrança de tributos. Entretanto, o STF não admite a aplicação de sanções políticas aos contribuintes como forma de coação para pagamento de tributo, uma vez que o fisco possui meios próprios para a cobrança, como a execução fiscal. Trata-se de entendimento pacificado, objeto das Súmulas 70, 323 e 547 do STF. As duas primeiras súmulas afirmam ser inadmissível a apreensão de mercadorias e a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para pagamento de tributos. E, se tais medidas são vedadas, ainda mais o será a restrição à liberdade do indivíduo, direito fundamental fortemente protegido pela Constituição Federal.
Portanto, o entendimento de que o não recolhimento de ICMS próprio é crime não se sustenta a partir da análise do ordenamento jurídico nacional e da jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores. E, considerando que essa decisão não possui efeito vinculante, acreditamos que a discussão sobre a matéria ainda não está encerrada.