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Sobre a PEC dos Precatórios: afinal, ao que se presta a PEC 23/2021?
Sobre a PEC dos Precatórios: afinal, ao que se presta a PEC 23/2021? - Há mais de cinco décadas, foram lançados os alicerces do RMMG Advogados em Porto Alegre, com foco principalmente no Direito Trabalhista, vocação maior do nosso fundador, Dante Rossi.
30/11/2021

Bruno A. François Guimarães

A Proposta de Emenda à Constituição – PEC 23/2021 visa modificar a sistemática de pagamento de precatórios. A PEC em questão já foi aprovada pela Câmara dos Deputados e está em vias de ser votada pelo Senado Federal.

Segundo o Governo Federal, principal interessado na sua aprovação, a PEC 23/2021 resultaria num necessário desafogo das contas públicas, visto que a necessidade de pagar os precatórios, nos termos hoje vigentes, gera um custo que inviabilizaria a assunção de outras despesas, como, por exemplo, o pagamento de R$ 400 à população carente a título do programa Auxílio Brasil até o final de 2022.

Assim, em síntese, o que está em jogo é o seguinte: o Governo Federal pretende institucionalizar um calote no pagamento de precatórios, visando obter uma importante liberdade orçamentária que seria utilizada para custear, dentre outros itens, o programa Auxílio Brasil. Coincidentemente ou não, trata-se de ano eleitoral.

Apesar das aparentes boas intenções de tal medida, as críticas que podem ser feitas à PEC 23/2021 são inúmeras. Em síntese, pode-se apontar três ordens de problemas: (1) atualização dos precatórios exclusivamente pela taxa Selic; (2) limitação das despesas anuais com precatórias, em que o Poder Público é, ao mesmo tempo, réu e devedor; (3) falácia dos motivos que fundamentam a tentativa de emplacar a PEC em questão.

Para se dimensionar o grande impacto que a PEC 23/2021 gerará nas contas públicas caso aprovada (há quem a chame de "Meteoro”), tem-se que os dados do Governo indicam uma despesa com precatórios de R$ 89 bilhões em 2022. Contudo, caso validados os novos critérios propostos, tais valores seriam limitados para aproximadamente R$ 40 bilhões.

Quanto ao ponto (1), consta do texto da PEC 23/2021 que os precatórios que não forem expedidos em decorrência do teto de gastos assim ajustado terão prioridade para pagamento nos anos seguintes, a serem corrigidos monetariamente pela taxa Selic. Atualmente, a correção se dá pelo IPCA + 6% ao ano ou, em alguns casos, pela própria taxa Selic que agora se tenta universalizar.

Acontece que a tentativa de atualização de precatórios pela taxa Selic, de forma universal e irrestrita, já foi julgada inconstitucional pelo STF quando da ADI 4.357, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, oportunidade em que se analisou a PEC 62/2009, não à toa conhecida como “emenda do calote”.

Na oportunidade, o ministro Luiz Fux bem apontou que a taxa Selic não é um referencial idôneo para mensurar a perda de poder de compra da moeda brasileira no tempo, visto que fixada em critérios que não guardam relação de pertinência com a inflação. Neste sentido, veja-se que o Boletim Focus, pesquisa semanalmente publicada pelo Banco Central, reviu recentemente suas projeções para a inflação em 2022, fixando-a em 4,96%, enquanto a Selic, apesar de ainda estar definida em 7,75% pelo Comitê de Política Monetária (Copom), já conta com sinalização de provável elevação em mais 1,5%, totalizando 9,25%.[1]

Logo, já neste ponto há dois problemas graves. Em primeiro lugar, a insistência numa discussão já rechaçada pelo STF; em segundo lugar, a insistência em se adotar um critério de correção dissociado da realidade que visa compensar.

Quanto ao ponto (2), necessário recordar que precatórios nada mais são do que despesas geradas pelo próprio Poder Público, visto que fruto de condenações judiciais já transitadas em julgado. Ou seja, a cristalização de um dever de reparar uma violação a direitos causada pelo próprio Poder Público, de forma que se mostra no mínimo questionável uma tentativa de burlar a reparação de um dano por si mesmo causado.

Noutros termos, a PEC 23/2021 consiste numa tentativa de o próprio devedor estabelecer um limite ao seu dever de pagamento que lhe seja “razoável”, como se afirmasse: “devo, não nego, mas pago quando puder”. É neste sentido que a PEC também prevê uma possibilidade de parcelamento de precatórios, o que igualmente já foi declarado inconstitucional pelo STF.

São duas as regras de parcelamento sugeridas:

(1) A primeira, de caráter temporário, prevê o pagamento inicial de 15% das dívidas cuja soma total for superior a 2,6% da receita corrente líquida dos 12 meses anteriores e o parcelamento do restante em nove anos;

(2) A segunda, de caráter definitivo, prevê o parcelamento de todo precatório que for superior a R$ 66 milhões segundo os mesmos critérios da regra temporária, ou seja, 15% do valor seria pago à vista e o restante em nove prestações.

Segundo o Ministério da Economia, tal mudança significaria uma economia de R$ 33,5 bilhões em 2022.

A EC 30/2001 previu o parcelamento de precatórios em dez anos, o que foi declarado inconstitucional pelo STF quando do julgamento da ADI 2.356, sob o fundamento de que tal prática violaria o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, afora a violação à separação dos poderes, pois decisão judicial transitada em julgada estaria sendo indevidamente restringida e limitada por uma manobra legislativa.

Em síntese, decidiu o STF que não poderia uma questão já definitivamente julgada pelo Judiciário ser, posteriormente, restringida e recortada conforme a conveniência do próprio Poder Público. Não é dado ao devedor, ainda que se trate do Poder Público, estabelecer como e quando pretende quitar com suas obrigações.

Ou seja, também a questão do parcelamento de precatórios já foi analisada e rechaçada pelo STF. Mas não apenas isso.

Um grande problema a respeito da declaração de inconstitucionalidade da EC 30/2001 foi o longo tempo que o STF demorou para sua análise, visto que a respectiva medida cautelar somente foi apreciada no final de 2010 (o mérito segue pendente de apreciação). Portanto, ao longo de aproximadamente dez anos os beneficiários de precatórios se viram sujeitos à sistemática ora em questão, o que acabou gerando um mercado paralelo de comercialização de precatórios, que eram adquiridos mediante um deságio do seu valor de face por quem pudesse aguardar o seu pagamento ou utilizá-los para compensação tributária.

Impressionantemente, ao invés de buscar a solução de tal cenário, o Poder Público preferiu tentar se aproveitar dele. Por meio da EC 62/2009, instituiu-se uma sistemática que permitia preferência àqueles que aceitassem receber seus precatórios por um valor inferior ao seu efetivo valor de face. A rigor, tratou-se de tentativa do Poder Público em ter “dois pés em duas canoas”, pois instituiu uma sistemática que lhe permitia, alternativamente, ou pagar menos aos seus credores ou pagar de forma parcelada.

Não à toa, conforme antecipado, a EC 62/2009 foi declarada inconstitucional pelo STF, quando do julgamento da ADI 4.425. Uma vez mais, a fundamentação foi no sentido de violação à separação de processos, ao direito adquirido, à coisa julgada, dentre outros.

Em suma, assim como o STF já decidiu que não é possível o estabelecimento da taxa Selic como critério de atualização monetária de precatórios não pagos, também já decidiu que não é possível a instituição de uma sistemática de parcelamento de precatórios.

Afora todo o quanto acima exposto, é necessário entender o que acontece com os precatórios que não são pagos e entram no regime de parcelamento. Conforme o texto, tais precatórios se tornariam prioritários para pagamento no exercício subsequente, numa verdadeira “rolagem” da dívida, mas na prática isso significará a pura e simples impossibilidade de pagamento.

Com efeito, a PEC 23/2021 cria uma espécie de fila de prioridades para pagamentos, que seria consistente dos precatórios não pagos pelo regime de parcelamento, dívidas da União com Estados relativas ao FUNDEB (Fundo de Educação Básica), precatórios alimentares, precatórios de idosos, de pessoas com deficiências e portadores de doenças graves, além das requisições de pequeno valor (RPV).

Segundo os critérios da PEC 23/2021, dos R$ 89 bilhões de total em precatórios, apenas R$ 39,9 bilhões seriam pagos em 2022. A diferença ficaria para o exercício subsequente, qualificados como “prioritários” a serem pagos no subteto acima especificado. Desses R$ 39,9 bilhões, R$ 26,6 bilhões dizem respeito a RPVs, de forma que restaria apenas R$ 13,3 bilhões para o efetivo pagamento de precatórios.

Imaginando um aumento anual de meros 10% no valor do contingente de precatórios (muito inferior aos índices reais), percebe-se com facilidade que em pouco tempo sequer os precatórios preferenciais poderão ser pagos. O que dizer, então, dos demais precatórios!

Ou seja, a PEC 23/2021 cria uma situação inusitada em que o Poder Público, devedor da dívida em questão, estabelece uma sistemática já tida por inconstitucional em diversas vezes, segundo a qual poderá pagar a própria dívida de forma parcelada e dentro de parâmetros por si mesmo estabelecidos, sendo que, acaso respeitadas as novas regras, em pouco tempo já não terá mais condições de pagar sequer suas dívidas prioritárias. O absurdo da proposta é evidente, consistindo, à toda evidência, em nova tentativa de calote contra os credores.

Finalmente, quanto ao ponto (3), é necessário perquirir sobre as “boas intenções” do Governo Federal em propor essa mudança na sistemática de pagamento de precatórios. Isso porque, conforme alardeia, tratar-se-ia de medida necessária para o custeio do programa Auxílio Brasil.

Acontece que, paradoxalmente, em fala proferida no dia 16 de novembro, o próprio presidente afirmou que pretende se valer da margem orçamentária originada da PEC 23/2021 para providenciar um reajuste na remuneração de servidores públicos, o qual seria “sem exceções”, nas suas palavras.

A verdade é que parece haver pouco compromisso por parte dos administradores públicos em providenciar efetivas economias nas contas públicas, sendo muito mais fácil “colocar a culpa” na conta dos precatórios. Neste sentido, calha recordar a histórica manifestação do então ministro Ayres Britto, no voto proferido na aqui já referida ADI 4.357, quando apontou dados dos últimos dez anos que evidenciaram a falácia dos argumentos alarmistas e protecionistas então utilizados pelo Governo.

Conforme pontuou o ex-ministro na oportunidade, de forma exemplificativa:

  1. a) Em 2007, o Distrito Federal despendeu R$ 1,7 milhões em precatórios e R$ 103,8 milhões em publicidade e propaganda. Já em 2008 essas despesas foram de R$ 6,57 milhões em precatórios e de R$ 152,8 milhões em publicidade e propaganda;
  2. b) A dívida pública judicial do Rio Grande do Sul era de R$ 1,6 bilhões, em valores aproximados. Contudo, seus gastos com precatórios em 2009 foram de R$ 38,6 milhões, embora suas despesas com publicidade e propaganda alcançaram montante superior a R$ 55 milhões.

Ainda referindo outros entes da Federal, o então ministro concluiu da seguinte forma: "O cenário de colapso financeiro do Estado não parece verdadeiro, ao menos na extensão em que se alardeia. O pagamento de precatórios não se contrapõe, de forma inconciliável, à prestação de serviços públicos".

Não deixa de ser curioso que toda essa discussão venha à lume precisamente em ano eleitoral e à revelia dos valores destinados ao que se convencionou chamar de “orçamento secreto”, consistente numa modelagem orçamentária em que emendas podem ser realizadas com identificação do órgão orçamentário, da ação a ser desenvolvida e até mesmo do seu beneficiário, mas o parlamentar que indica a destinação da respectiva verba fica oculto.

Em síntese, em tempos de uso de dinheiro público de forma oculta, parece contra intuitiva a instituição de um calote via PEC nos credores de precatórios, sob o argumento de custeio temporário de um programa social que indubitavelmente é importante e relevante, mas que o próprio presidente da República reconhece, publicamente, que não será o único destino dos valores assim liberados.

Afinal, ao que se presta a PEC 23/2021, senão para que o próprio Poder Público decida quando e como vai pagar o que deve?

[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-11/mercado-financeiro-eleva-projecao-da-inflacao-para-1012.

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