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Abril azul e o papel do Direito Administrativo na tutela da pessoa com transtorno de espectro autista
Abril azul e o papel do Direito Administrativo na tutela da pessoa com transtorno de espectro autista  - Por Isadora Formenton Vargas e Mariana Names Bettiol
Abril azul representa o mês da conscientização sobre o Transtorno...
29/04/2024

Por Isadora Formenton Vargas e Mariana Names Bettiol

Abril azul representa o mês da conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA)1, mostrando-se importante refletir sobre as mais diversas dimensões jurídicas de proteção da pessoa com TEA, reconhecido como deficiência pela Lei n. 12.764/2012 para todos os efeitos legais. 

Diante disso, ao mesmo tempo em que se pretende informar sobre alguns direitos da pessoa com TEA e também de direitos específicos destinados aos familiares e aos cuidadores, se busca, com isso, suscitar o debate sobre o papel do Direito Administrativo na promoção de uma sociedade mais justa e inclusiva, considerando que tais direitos se verificam em diversos âmbitos da relação cidadãos e Estado: educação, saúde, previdência, concurso público, serviço público, dentre outros.

Nesse sentido, o TEA é um transtorno de neurodesenvolvimento que afeta as habilidades de comunicação e comportamento social dos indivíduos, e, dentro de seu espectro, apresenta diferentes gradações2. A classificação do TEA se dá em três níveis de suporte, do mais “leve” ao mais severo, analisando-se, para esta aferição, a funcionalidade do paciente frente às dificuldades oriundas do TEA3. Contudo, esta distinção não alcança o âmbito legal: para fins de classificação do TEA como deficiência, não se admite a diferenciação entre graus de severidade, mas essa aferição pode resultar no enquadramento da pessoa com TEA em distintas hipóteses legais previstas na legislação. 

É importante referir que os níveis de suporte não são imutáveis, e variam conforme as necessidades que o indivíduo manifesta em diferentes momentos de sua vida4, dependem, também, se o diagnóstico foi ou não tardio, e se a pessoa teve ou não acesso às terapias necessárias para seu desenvolvimento. 

Essa variação e mutabilidade do TEA contrapõe-se à necessidade da Administração Pública de estabelecer critérios legais objetivos para questões da vida pública em que devem ser realizadas adaptações para algumas deficiências, como prestação de concursos e vestibulares, aposentadoria, concessão de benefícios e outras medidas que permitam o reequilíbrio de posições jurídicas, visando à isonomia material. 

Nesse sentido, indica-se a Lei nº 12.764/2012, também conhecida como Lei Berenice Piana, que, além de instituir a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, alterou o Estatuto do Servidor Público Federal (§ 3º do art. 98 da Lei nº 8.112/1990). Essa alteração no Estatuto do Servidor Público Federal foi um marco importante, pois ampliou os direitos da pessoa com deficiência, prevendo, por exemplo, o estabelecimento de horário especial para o servidor com deficiência, conforme suas necessidades (art. 97, § 2º da Lei nº 8.112/1990).

Um ponto de destaque é que, nessa ampliação dos direitos, estão também incluídos os cuidadores das pessoas com deficiências, sendo possível a solicitação de horário especial de trabalho para os servidores que possuam cônjuges, filhos ou dependentes com deficiência (art. 97, § 3º do referido diploma legal). 

Destaca-se que a redução da jornada de trabalho das pessoas com deficiência e de seus familiares originou-se em decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, no Tema 1097, diante dos compromissos que o Brasil assumiu ao promulgar, com status de Emenda Constitucional, o instrumento das Nações Unidas intitulado “Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo”. Tamanha a relevância deste tópico, o  julgado mencionado estendeu os efeitos deste entendimento aos trabalhadores regidos pela CLT:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. TRATADO EQUIVALENTE À EMENDA CONSTITUCIONAL. PROTEÇÃO INTEGRAL E PRIORITÁRIA À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. LEI 12.764/2012. POLÍTICA NACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA DA FAMÍLIA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO SEM ALTERAÇÃO NOS VENCIMENTOS. SERVIDORA ESTADUAL CUIDADORA DE FILHO AUTISTA. INEXISTÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ESTADUAL. ANALOGIA AO ART. 98, § 3°, DA LEI 8.112/1990. LEGITIMIDADE DA APLICAÇÃO DE LEGISLAÇÃO FEDERAL QUANDO A OMISSÃO ESTADUAL OU MUNICIPAL OFENDE DETERMINAÇÃO CONSTITUCIONAL AUTOAPLICÁVEL QUE NÃO ACARRETE AUMENTO DE GASTOS AO ERÁRIO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE SUBSTANCIAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE DE REPERCUSSÃO GERAL. 

(RE 1237867, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 17-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n  DIVULG 11-01-2023  PUBLIC 12-01-2023)

O combate à discriminação e a garantia legal dos direitos das pessoas portadoras de deficiências, nesse sentido, passa também necessariamente pela inclusão de suas famílias nesta discussão.  

Além disso, como referido no início do texto, as pessoas com TEA são consideradas pessoas com deficiência, de modo que caberá a análise das previsões do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). E não se resume a uma interpretação descontextualizada de ações efetivas de combate à discriminação. Quanto ao ponto, vale destacar que a omissão ou a inadequação das iniciativas de combate às barreiras (art. 3º, IV) para que se possa alcançar uma efetiva inclusão, muitas vezes podem ser resultado de uma simples prática de neutralidade, gerando prejuízos irreparáveis.

No que se refere ao tema dos concursos públicos, destaca-se que a reserva de vagas PCD é matéria constitucional, conforme prevê o art. 37, VIII da Constituição Federal, que prevê que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos a pessoas com deficiência e definirá os critérios de sua admissão. No Rio Grande do Sul, por exemplo, coube ao Decreto nº 56.229/2021. Dentre as previsões, o art. 15 dispõe que no ato da inscrição, dentre outros, o candidato PCD deverá declarar as suas condições individuais, o que indica a necessidade de avaliação individualizada, até para se definir quais serão as “adaptações razoáveis”.

Além disso, o debate sobre o que significa “acessibilidade” para pessoas com TEA, por exemplo, é complexo, pois é um transtorno de neurodesenvolvimento que afeta as interações de ordem social e sensorial, e se apresenta de modo muito diverso em cada indivíduo5, o que ratifica a necessidade de considerar caso a caso, ao mesmo tempo em que se busca, de certo modo, que se torne um debate universalizável. 

Há, portanto, sempre uma zona cinzenta, tendo em vista que nem sempre há como enquadrar as pessoas em uma ou em outra hipótese legal, e, apesar do TEA ser considerado deficiência, os “efeitos legais” dependem muitas vezes de regulamentações, entendimentos jurisprudenciais, avanços doutrinários, e, sobretudo, de um exame casuístico que, a toda evidência, pode gerar injustiças mesmo diante da pretensão de correção. Inclusive, é possível perceber variações de uma legislação estadual para outra, e as hipóteses legais podem variar a depender do tema (concurso público, previdência, educação). 

Por conseguinte, o TEA, como um transtorno de neurodesenvolvimento que se manifesta em diferentes níveis de suporte, evidencia a existência de lacunas na atuação da Administração Pública relativamente à efetiva implementação de diretrizes de inclusão e acessibilidade para pessoas com deficiência. Nesse sentido, houve avanços legais significativos para o reconhecimento e a garantia dos direitos das pessoas com TEA, mas há um caminho longo a ser percorrido pela Administração na ampliação destas previsões legislativas e sua aplicação prática.

1 02 de abril representa o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, data instituída pela ONU em 2007.

RIBEIRO, Karol. Transtorno do Espectro Autista: entenda os sinais. Ministério da Saúde. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/agosto/transtorno-do-espectro-autista-entenda-os-sinais> Acesso em: 19 abr. 2024.

AGUIAR, Beatriz A. Níveis do autismo: entenda quais são e a mudança do termo. Observatório do Autista. Disponível em: <https://observatoriodoautista.com.br/2023/04/28/niveis-do-autismo-entenda/> Acesso em: 19 abr. 2024.

RUSSO, Fabiele. É possível mudar o nível de suporte do autismo? Neuro+Conecta. Disponível em: <https://neuroconecta.com.br/e-possivel-migrar-nos-graus-do-autismo> Acesso em: 19 abr. 2024.

RIBEIRO, Karol. Transtorno do Espectro Autista: entenda os sinais. Ministério da Saúde. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/agosto/transtorno-do-espectro-autista-entenda-os-sinais> Acesso em: 19 abr. 2024.

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